REGIÃO
LUTO: Morre Judith Lupo, responsável por fundar a Casa Vida e acolher crianças vivendo com HIV/aids
A irmã Judith Elisa Lupo, conhecida por acolher centenas de crianças vivendo com HIV nos primeiros anos da pandemia e responsável por iniciativas humanitárias que ajudam diariamente milhares de pessoas que vivem em situação de extrema vulnerabilidade social na zona leste de São Paulo, morreu na manhã desta terça-feira (23), aos 83 anos, em Araraquara. A informação é da Agência de Noticias da Aids.
Religiosa, com mais de meia década de vida fraterna em comunidade, foi diretora Presidente do Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto, na zona leste de São Paulo. Ela recebeu de Dom Luciano Mendes de Almeida a missão de cuidar de crianças, adolescentes, idosos e pessoas em situação de rua.
Humanidade, bondade, empatia e solidariedade são sinônimos que definem a trajetória da irmã, que decidiu se dedicar ao trabalho social porque estava preocupava com a “meninada” que ficava na rua sem perspectiva de vida.
A história dela ao longo destes anos à frente da Bom Parto se mistura na vida de muitas pessoas que receberam apoio, acolhida e amor quando era mais necessário.
Por mais de 30 anos foi um nome conhecido por gerações de pessoas assistidas por essa entidade social. Inclusive de muitas crianças vivendo com HIV/aids que hoje já são adultos e passaram pelas casas de apoio Vida I e II. A Casa Vida nasceu, no início dos anos 90, como alternativa para o acolhimento institucional de crianças vivendo com HIV/aids.
Uma vida dedicada ao serviço e à compaixão
Irmã Judith Elisa Lupo nasceu em 27 de maio de 1940 na cidade de Araraquara, filha de Rômulo Lupo e Luiza Adélia Eberle Lupo. Sua trajetória é marcada por uma profunda devoção religiosa e um compromisso incansável com a defesa dos direitos humanos.
Ainda jovem, se tornou religiosa, integrando a Congregação das Religiosas do Sagrado Coração de Maria, fundada em 1849 por inspiração do Padre Jean Gailhac. Seu carisma foi fortalecido pelo exemplo de Saint Mère Jean.
Judith obteve formação em Filosofia e Orientação Educacional, e seu testemunho como religiosa a levou a administrar colégios e a servir como Conselheira da Província Brasileira e do Conselho Geral, atuando em prol de todas as províncias do mundo.
Na década de 80, assumiu um papel fundamental na Região Episcopal Belém da Arquidiocese de São Paulo. Ela coordenou a Pastoral da Criança e também se tornou Diretora Cultural do Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto.
O Centro Social tem como missão articular e contribuir para a defesa dos direitos de crianças, adolescentes, familiares, população em situação de rua e idosos em São Paulo. Judith desempenhou um papel crucial no desenvolvimento de programas socioeducativos nessas áreas, favorecendo o protagonismo social.
Sua sensibilidade e visão educacional foram fundamentais nos primeiros anos do Bom Parto. Ela se dedicou à articulação socioeducacional das unidades de atendimento, enfrentando as realidades desafiadoras dos territórios onde pessoas viviam em situação de pobreza, abandono e, muitas vezes, miséria.
A compaixão de Ir. Judith diante do sofrimento dos acolhidos e suas habilidades de gestão a levaram a ser eleita Presidente do Conselho Deliberativo do Bom Parto em 1994. Sua liderança servidora, aliada a uma espiritualidade cristã profunda, se manifestou em gestos de humanidade, dignidade e generosidade.
Ela seguiu o exemplo de Jesus, multiplicando o gesto da partilha. Como diz o poeta, “bastariam dois pães e dois peixes e o milagre do amor para acabar com tanta fome e tanta dor”.
A dedicação diária de Ir. Judith inspira muitas pessoas a lutar pela dignidade humana, justiça social e compromisso ético. Além de suprir a fome física, ela busca saciar a fome de afeto, presença amorosa e acesso aos bens sociais, econômicos e culturais para que todos alcancem a felicidade.
Sob a gestão de Ir. Judith, o Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto contribuiu significativamente para as políticas públicas da cidade de São Paulo nas áreas de Educação Infantil, Assistência Social e Saúde. Atualmente, o centro atende diariamente mais de 15.000 crianças, adolescentes, jovens, famílias, adultos em situação de rua e idosos em suas 48 unidades e sede administrativa.
Lá em Casa
Em abril de 2015, a irmã atendeu ao pedido da jornalista Roseli Tardelli, diretora desta Agência, e esteve na Casa Verde para fazer a benção no lançamento do projeto “Lá em Casa — Saúde, Arte, Bem-Estar e Cidadania”, idealizado por Roseli. A iniciativa, que está completando nove anos de muito acolhimento, promoção da saúde e exercícios, atende atualmente os alunos de forma online.
“Conheci a querida irmã Judith quando comecei a me aproximar de pessoas que trabalhavam com crianças que haviam se infectado por transmissão vertical. Ela mesma me levou para conhecer alguns bebês na Casa Vida 1, fundada para receber os recém-nascidos. Com carinho e atenção chegou a contar a história de algumas delas. Carinho, acolhimento e atenção. Sempre presentes na jornada de Judith Elisa Lupo por quem sempre tive muito respeito e admiração. O trabalho que ela criou, em parceria com Unicef, para integrar adolescentes vivendo e convivendo com HIV e ampliar o conhecimento sobre saúde e direitos humanos, me fez conhecer a Talita Martins, que atualmente coordena a redação da Agência.
Irmã Judith deixa na Terra um legado de construção, ressignificação e esperança. Um legado de amor e fé no ser humano e nos ensinou que a vida e acreditar no bem para o próximo sempre vale e valerão a pena! Muito obrigada irmã Judith por existir em nossas vidas e nos ensinar cotidianamente a trabalhar pelo amor, pelo bem e por um mundo mais amoroso e acolhedor: muito obrigada!”, agradeceu a jornalista Roseli Tardelli.
Marta Regina Marques, assistente social e coordenadora dos Consultórios na Rua do Bompar, também lamentou a partida: “A irmã Judith foi uma pessoa visionária, uma mulher à frente do seu tempo. Foi uma das pessoas mais inspiradoras que eu conheci. Além de fazer uma gestão de mais de 50 núcleos do Bompar, ela tinha um olhar humano para os trabalhadores e para os cidadãos, aqueles que a gente assistia todos os dias. Ela, ao escutar as nossas histórias, parava e olhava no fundo dos nossos olhos, o que às vezes nos deixava até meio constrangidos, porque ela não tirava o olhar dos nossos olhos. Irmã Judith dizia que os olhos eram a maior expressão de verdade, de sinceridade e de honestidade que alguém pode demonstrar. Isso é muito forte. Por isso, quando eu converso com alguém, eu olho nos olhos. A irmã Judith, além de todo o trabalho que ela desenvolvia dentro do Bompar, esteve comigo nos momentos mais difíceis da minha vida. Quando meu pai enfartou, ela esteve comigo. Eu sofri muito naquela ocasião, pois os médicos tinham o desenganado. Eu estava na capelinha, chorando, e aí ela chegou e falou assim: ‘olha, vamos entregar a vida do seu pai para Deus.’ E aí eu falei: ‘não, irmã, eu não vou entregar, porque vai que Ele leva.’ E ela me falou: ‘quem disse que você tem poder para segurar a vida de alguém?’ E sei que não tenho, nenhum de nós temos. Quando a minha mãe também esteve no hospital, cega há quase dois anos, ela recebeu a ligação da irmã Judith. A minha mãe já estava com câncer e disse para a irmã: ‘eu sei que eu vou morrer, mas eu só não queria morrer cega’. A irmã falou: ‘então eu vou rezar para que a senhora não vá embora cega, porque se esse é o seu sonho, o seu desejo, que Deus conceda esse dia de visão’. No dia seguinte, a minha mãe estava enxergando, ela enxergou aquele dia, depois foi para a UTI e faleceu. Quando meu filho ficou doente, ela também esteve comigo. E assim ela fazia com todos aqueles que estavam à sua volta. Com cada trabalhador, com cada pessoa, cada homem de rua, quantos aqui se formaram porque a irmã Judith foi buscar parceria nas universidades, na congregação onde ela pertencia e na própria Lupo para ajudar com bolsa de estudo para os agentes de saúde, pessoas que vieram da situação de rua… Mais de 30 pessoas se formaram graças a toda generosidade que tinha a irmã. Ela conseguiu transformar pessoas em situação de rua, pessoas que eram viciadas em crack e outras drogas, em projeto de vida, pessoas que nunca imaginaram antes de estar na rua, em fazer uma faculdade. E graças à generosidade, ao ensinamento, à resiliência dela, que dizia para todos que se eles quisessem era possível sim, eles voltaram a estudar, voltaram para as suas famílias e hoje centenas de pessoas estão bem graças à irmã Judith. Nós temos pessoas que estavam em situação de rua, nas ruas de São Paulo, e que hoje são médicos, enfermeiros, auxiliares, psicólogos, assistentes sociais… Alguns trabalham conosco, mas a sua grande maioria está tocando o seu projeto de vida em outros locais do Brasil. E todos eles são muito gratos por tudo que ela fez. Eu tenho o privilégio de dizer que convivi com uma pessoa santa aqui na terra. E uma dessas pessoas é a irmã Judith. Uma pessoa que está à frente do seu tempo. Uma mulher de garra, de fé e muita coragem.”
O velório
O velório da irmã Judith Lupo ocorreu nesta terça-feira (23), das 12h30 às 16h20, no Memorial Fonteri Unidade 2, na Avenida Portugal, 1030, no Centro de Araraquara. De lá, o corpo foi levado para o Cemitério São Bento, onde foi sepultado.
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